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O referencial metodológico utilizado em "Entre o Mito e a Fronteira" centra-se na perspectiva da sociologia fenomenológica, desenvolvida por Alfred Schutz, mas o livro também traz reflexões a respeito da fenomenologia aplicada às ciências sociais e particularmente aos campos co-referentes da sensibilidade em geral e das artes. Outros conceitos importantes são os de "fronteira", "identidade" e "vitalismo". Extraio dois excertos do livro que explicitam um pouco das discussões metodológicas presentes nele.

Esboço de sociologia fenomenológica

 

Faço, a seguir, uma explanação mais detalhada do referencial metodológico. Segundo Schutz, vivemos num “mundo da vida”, o mundo do cotidiano, no qual se dão as nossas vivências. Nossa atitude básica, vivendo nesse mundo, é uma atitude “natural”, caracterizada por uma sensação de normalidade e de não questionamento sobre os diversos fenômenos do mundo social. Vemos esses fenômenos de dentro para fora, e não de fora para dentro, como se propõem as ciências sociais e como fazem os cientístas. Para nós, eles são apenas “dados”, elementos que se destacam pelo interesse pragmático que possamos sentir por eles ou porque nos são trazidos pelas pessoas com quem interagimos, a partir do interesse, também pragmático, que possam ter para elas.

 

Desse modo, o mundo da vida é um mundo de “proximidades”. Proximidades distintas, bem entendido, que achegam-se ou distanciam-se de nossa vivência segundo, sempre, nossa atitude natural e que, residuais, acabam por formar grupos de sentidos, ou melhor, “províncias de sentido”. Ao ato cognicente que caracteriza essas proximidades, que caracteriza o seu uso para nós, podemos chamar de tipificações.

De tipificação em tipificação, atravessando as províncias de sentido que facilitam nosso estar no mundo e que perfazem nossas múltiplas situações biográficas, acabamos formando estoques de conhecimento. Usamos deles cotidianamente, em nosso estar no mundo, ou melhor, em nossa vida prática. É por meio deles que interagimos e que percebemos o que nos cerca. Sobretudo, necessariamente, aquilo que não faz parte de nossa interioridade (também ela uma província de sentidos). Porém, pelo fato de que são múltiplas e relativas – à nossa vivência – as nossas proximidades, o mundo, com seus objetos, ideias e pessoas não é – nenhum desses elementos o são – apreendidos isoladamente. Na verdade, eles são percebidos dentro de um determinado horizonte perceptivo. Aí, são caracterizados segundo sua familiaridade típica ou segundo nosso pré-conhecimento sobre eles.

 

Desse fato, podemos falar, com Schutz, em “horizontes”. Toda cognição tem um horizonte, mas um horizonte que, por ser da natureza do mundo, está sempre em trânsito, “em fluxo” está sempre se modificando. Se conexo a uma das províncias de sentido que nos pertencem com clareza, esse horizonte ganhará em proximidade, o contrário também acontecendo.

O tema do horizonte também está presente em Husserl, para quem toda vivência tem seu próprio horizonte – no caso, um horizonte de possibilidades relativamente indeterminadas – e se abre em direção a elas[1]. Também em Husserl encontramos a ideia de que todos os entes – tudo o que há no mundo, inclusive nós – possuímos, ao mesmo tempo, um horizonte interno e outro externo, este último responsável pela dinâmica relacional do ente com o mundo e, por essa razão, aberto e infinito.

É na dinâmica das atitudes naturais que, segundo Schutz, nosso horizonte se conforma. Nesse sentido, podemos dizer que o horizonte é percebido a partir das províncias de sentido que nos cercam e que usamos. Ele possui, pois, uma dinâmica pré-reflexiva. E isso é a condição mesma da possibilidade da compreensão hermenêutica e da fusão dos diversos horizontes que enseja o fenômeno da intersubjetividade.

Passemos agora a um detalhamento mais preciso da sociologia fenomenológica. Vejamos esse mesmo procedimento metodológico com mais detalhes. Podemos dizer que a reflexão de Schutz inicia como uma questão precisa: como se forma a experiência social? A partir dessa questão Schutz elabora uma análise constitutiva da experiência, objeto central de “Der sinnhafte Aufbau der soziale Welt” (1929-32) – obra traduzida para o inglês como “The phenomenology of the social world”. Nesse livro, Schutz dialoga com a fenomenologia de Husserl, tendo por base suas leituras de Henri Bergson. Schutz reprova, à fenomenologia de Husserl, seu solipsismo transcendental, acima assinalado, e parte em busca de uma fenomenologia da atitude natural ou, mais ainda, em busca de uma ontologia do mundo da vida. Para isso, Schutz elabora uma tese sobre a coordenação das experiências e das ações – à qual denomina análise constitutiva da experiência e da ação e propõe uma tipologia das relações sociais.

Um  aprofundamento  dessa  tese  é   desenvolvido em duas  obras  posteriores:  “Reflections  on  the  problem  of relevance” (1947-51) e (junto com Thomas Luckmann) “Strukturen der Lebenswelt” (1973-83). Esse aprofundamento resulta numa teoria fenomenológica da cultura, baseada no conceito weberiano de “tipos ideais” e na reflexão husserliana de que a “tipificação” é o processo fundamental pelo qual o homem conhece o mundo, bem como a ideia complementar de que essas “tipificações”, ou senso-comum, estão em contínua transformação.

Schutz articula essa teoria fenomenológica da cultura por meio de três noções: reservas de experiência, tipicalidade da vida cotidiana e estruturas de pertinência. A noção de reservas de experiência refere-se à “sedimentação” dos saberes herdados pelo indivíduo, seja por meio de suas experiências próprias, seja por meio de seus educadores – ou seja, sejam eles de natureza prática ou teórica[2]. A segunda noção, a de tipicalidade da vida cotidiana, é contígua à primeira e refere-se ao modo pelo qual as diversas experiências sociais conformam-se com base num modelo anteriormente estabelecido:

ce qui est expérimenté dans la perception actuelle d’un objet est transféré aperceptivement sur tout autre objet similaire, perçu seulement quant à son type.[3]

A terceira noção, a de estruturas de pertinência, refere-se às formas de controle das diversas situações sociais pelos indivíduos,  às quais podem ser de três tipos: temática, interpretativa ou motivacional, segundo a maneira como se produzem, em relação à situação social que objetivam.

Reservas de experiência, tipicalidades da vida cotidiana e estruturas de pertinência conformariam, segundo Schutz, a cultura. Elas seriam herdadas socialmente. Porém, também seriam reelaboradas, continuamente, ao longo do processo social.

Essa teoria fenomenológica da cultura é desenvolvida em diversos textos subsequentes, com destaque para “On multiples realities” (1943-44) e “Symbol, reality and society” (1954). Suas fontes fundamentais, Husserl e Weber, estão presentes nesses três conceitos gerais. Com efeito, ao longo de toda sua obra, Schutz dialoga com a problemática weberiana da “construção e validação dos tipos-ideais”, com a noção weberiana de “contextos de sentido” e com a noção husserliana de “referência apresentativa” na tentativa de responder à seguinte questão: como se constitui uma realidade estável e objetivamente recorrente, que é partilhada ou sancionada intersubjetivamente?

Em síntese, uma teoria fenomenológica da cultura procuraria responder ao problema colocado pelo fenômeno da intersubjetividade. Por ter tipicalidade a experiência do mundo tida pelos indivíduos, o conhecimento não é solipsista. Por serem herdadas e transformadas na duração da vida essas tipicalidades, o conhecimento é intersubjetivo.

Dessa maneira, a tipicalidade é o conceito chave de Schutz. Porém, para compreendê-la bem, é necessário observá- la em toda sua flexibilidade. Ronald Cox, intérprete de Schutz, assinala essa flexibilidade inerente ao tipo:

A type is originally formed by ignoring certain individual features not pertinent to the situation or purpose in wich, or for the sake of wich, it arises. Then, when new relevant information comes to the fore, it may be necessary to revise, expand or subdivide the type, or else to form a new type more specific than the old one.[4]

Com o que se conclui que um determinado tipo – uma tipificação social – constitui uma estrutura elíptica passível de, a todo momento, romper, fundir-se, dividir-se, de acordo como se desenvolva a experiência social. O que assinala o caráter intersubjetivo de toda tipificação.

Algumas perguntas podem ser abertas, a fim de melhor compreender-se essa relação: Como se constitui e se partilha a experiência do indivíduo? Como essa experiência se sedimenta e se transmite? Como ela se torna intersubjetiva?

Encontremos uma definição do que seria, em Schutz, a experiência. Sua reflexão sugere que a experiência se desenvolve na duração. A duração seria a corrente de experiências vivas (Erlebnisstrom), um fluxo infinito de qualidades heterogêneas, que se desenvolve de Agora e assim em Agora e assim (Jetzt und So). Porém, a duração não seria, simplesmente, um sucessão de unidades dissociáveis e indivisíveis. Ao contrário,  se  essas unidades existem (um Agora e assim determinado) elas interpenetram-se e mantêm entre si operações de “solidariedade íntima”, ressoando umas nas outras como “uma temporalidade pré-fenomenal e pré-imanente”[5].

 

Notas: 

[1] HUSSERL, Edmund. Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps. Paris, PUF, 1964 [1928], § 8, p. 27.

[2] SCHUTZ, Alfred. Sens commun et interprétation scientifique de l’action humaine, in Le chercheur et le quotidien, Paris, Méridiens-Klincksieck, 1987 [1953].

[3] Id., Ib., p. 13.

[4] COX, Ronald R. Schutz’s theory of relevance: A phenomenological critique. Boston/Londres, Martinus Nijhoff/The Hague, 1978, p. 7.

[5] SCHUTZ, Alfred et LUCKANN, Thomas. The structures of the life-world. Evanston, Northwestern University Press, 1973.

Por uma sociologia capaz de compreender a obra de arte

 

As diversas falas citadas no primeiro capítulo, em sua heterogeneidade, parecem sugerir, senão uma “identidade”,   a sugestão de uma “identidade” – ou, ainda, o desejo de uma “identidade”. Pode-se descrevê-las como uma experiência geracional, ou melhor, como um fenômeno de identificação social com o qual certos agentes sociais inferem-se a atribuição de “resgatar” um determinado nomos comum ao espaço amazônico e de defini-lo, em oposição ao espaço brasileiro, como uma história diferenciada. Através de seus processos criativos ou reflexivos, e sem que necessariamente tenham consciência disso, esses agentes sociais intuiriam a construção de um referencial identitário.

 

O termo intuir, aqui, representa o vitalismo social sugerido: não se trata de uma resposta de dominados às circunstâncias sociais dominantes, simplesmente, mas de uma reorganização das perspectivas sociais de forma a reinventar, mais do que recompor, as redes de expectativa dos indivíduos.

Percorrendo livros, discos, museus e jornais produzidos e consumidos na cidade de Belém, ao longo dos trinta últimos anos do século XX, pode-se pretender um problema: que fatores motivam essas associações de pensamento, posturas éticas, imaginários, alegorias?

 

Quais forem esses fatores, eles parecem assinalar um fenômeno de vitalismo social. Um vitalismo tátil, talvez, hexitante talvez, cheio de subterfúgios e marcado pela narrativa de sucessivas derrotas históricas e mesmo pela narrativa de derrotas do presente, do seu cotidiano. Porém, de qualquer forma, um vitalismo pleno, presente, ardoroso, fervoroso. Quais forem os fatores desse vitalismo, eles configuram um desejo-de- ser e demarcam a Amazônia enquanto ser social, enquanto ser coletivo, enquanto espaço projetado ou produção onírica.

 

Enunciam uma forma. Uma forma social, que não é a aparência da Amazônia na sua figuração, na sua representação, mas algo que está muito, muito mais além e que se identifica a uma espécie de totalidade de pertencimento: a uma experiência ancestral de pertenciamento, de identidade, que, nas gerações observadas, pretende se associar à Amazônia.

 

O vitalismo da moderna tradição amazônica, essa experiência geracional, atua como um reencantamento de um pequeno mundo – “s’esquisse sous nos yeux um monde reenchanté, accepté pour ce qu’il est”[1], diz Maffesoli, caracterizando a situação pós-moderna na qual as amarras de uma visão excessivamente racionalista do mundo começa a ceder e a permitir o desvelamento de dimensões do processo social escondidas pela modernidade.

A moderna tradição amazônica pode ser vista como um desvelamento social. Não como a recuperação e defesa de uma essência ou o resgate de tradições, como querem tantos autores, ainda dominados pelos paradigmas de uma modernidade castradora, mas sim como uma bricolagem coletiva, uma invenção ou imaginação cujos processos, dispersos no corpo social, podem aqui ser chamados de intersubjetividade.

 

Essa palavra assinala a sinergia entre pensamento e sensibilidade que leva ao reencantamento do mundo – ou melhor, a observação de que, sem as amarras do racionalismo, a sociedade, por   sua natureza, tende a encantar o mundo que a abriga. Talvez porque sem as amarras que separam sujeito e objeto, passado e presente, verdade e ilusão, a sociedade possa pensar nas suas formas puras...

 

Curioso observar que a soma das enunciações, imaginações, alegorias produzidas e consumidas na cidade de Belém, se reencanta o mundo, o faz por meio da beleza. É pela arte, e não por outro caminho, que está sendo enunciada essa Amazônia atual. É a arte, e não outro caminho, que expressa o vitalismo social da Amazônia atual.

 

Porém, como analisar objetos artísticos sociologicamente? Como fazê-lo, se o domínio da arte é o espaço onde se afirmam os valores contra os quais se constituiu a sociologia?

Como efetivar  uma  sociologia,  digamos  assim,  não sociologizante, não analítica, não atomizante? Como empreender uma sociologia estetizante, intuitiva, religadora, nutrida por convivência e por cumplicidade, que seja fruto de uma experiência de ler-junto, de estar-em, e não de falar-sobre ou analisar-a?

Como dissemos, a Sociologia se impõe, historicamente, como um  espaço  contrário  aos  elementos  que  possibilitam  a obra de arte. Pois onde a Sociologia afirma noções como aprendizado social, a obra de arte sugere, noções como talento, inspiração, dom natural e sensibilidade. Onde a Sociologia fala em cultura, coletividade, exterioridade, coerência, tecido ou mecanismo social, a obra de arte apresenta, simplesmente, sintomas de individualidade, personalidade, intencionalidade e total incoerência. A obra de arte pode ser vista como um campo de tensão permanente para a Sociologia, capaz de, a qualquer momento, contradizê-la e desmenti-la (2).

Necessário para a Sociologia, submeter a obra de arte… como de fato o fez desde o seus primórdios. Aliás, como faz não apenas a Sociologia, mas de um modo geral     a episteme ocidental: o conjunto das visões do mundo que relegam o campo da subjetividade ao terreno do imponderável e que chegam mesmo a criar uma disciplina domesticadora e reducionista para os fenômenos da arte: a Estética.

(...) 

 

Ao    sociólogo    interessado    na     compreensão dos fenômenos estéticos duas vias apresentam-se contemporaneamente: a primeira consiste em submeter esses fenômenos à sua disciplina, procurando uma explicação da arte enquanto fenômeno coletivo, exterior ao objeto estético. (...)  A segunda via para compreender os fenômenos artísticos seria o caminho oposto ao sugerido por esses autores: encontrar a explicação (ou a sensação) do fato artístico na  sua interioridade, pela via de uma sociologia compreensiva irmanada à fenomenologia. Essa segunda via baseia-se na ideia de que a arte não pode ser reduzida ao social – o que não quer dizer ignorar o contexto social no qual ela se dá e com o qual interage –, devendo, nos limites do possível, ser reduzida a si mesma. 

(...) Minha leitura não é propriamente da obra de arte, mas da experiência geracional que se gera na obra de arte, em torno dela e, por vezes, dela própria.

(...)

 

Seriam quatro os princípios gerais dessa pretendida sociologia fenomenológica da obra de arte: uma atitude anti-economicista, acrítica, descritiva e relativista.

Notas: 

[1] MAFFESOLI, Michel. Aux creux des apparences. Pour une éthque de l’esthétique. Paris, Plon, Le livre de Poche, 1990, p. 9.

[2] Cf. HEINICH, Nathalie. Ce que l’art fait à la sociologie. Paris, Minuit, 1998, p.15.

 

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